Em fevereiro de 1987 o processo reconstituinte no Brasil fora deflagrado por emenda à Constituição de 1967, através iniciativa do então presidente da República, José Sarney.
O Brasil consolidaria a transição política, inaugurada em 1984, com uma nova constituição (e sua consequente práxis). O movimento das diretas já tinha rendido seus frutos e a longa noite ditatorial, de mais de 20 anos, começava a despedir-se em face da nova aurora política e jurídica que a Assembleia Constituinte entreabrira.
O Direito Constitucional era, então, quase um nada entre nós. Os manuais que vicejavam nas prateleiras das bibliotecas universitárias, ou eram oferecidos ao público leitor nas livrarias, eram “cursos” de Teoria do Estado, História das Ideias Políticas, Filosofia do Direito, Ciência Política, mas nada comparáveis à operosidade – à manuseabilidade - técnica e normativa que hoje desfrutamos no Brasil. Exceção à essa tendência literária, tendo em conta a exegese do direito positivo vigente e o foco na dogmática jurídica, podemos destacar o Curso de Direito Constitucional Positivo de José Afonso da Silva, o livro de Celso de Mello, Anotações à Constituição de 1967, e a obra de Pontes de Miranda, Comentários a Constituição de 1967.
Como dizia Clemerson Cléve, em palestras e escritos que ouvi de sua voz e li de sua pena, o Brasil, com a nova constituição, fora pego “de calças curtas” para enfrentar um rico e promissor texto constitucional. Tínhamos constituição boa e nova, mas faltava-nos doutrina, teoria constitucional para compreendê-la e realizá-la. Faltavam-nos sentimento constitucional, segundo Lucas Verdu, e vontade de constituição, de acordo com Konrad Hesse, e cultura de constituição, segundo Peter Häberle, para fazê-la de folha de papel, nas palavras de Lassale, justificadora dos poderes de Estado, como fora na Ditadura, força de texto atuante em contexto transformador da realidade social e asseguradora de direitos e liberdades até então sonegados.
Naquele momento, todas as faculdades priorizavam uma formação civilista, privatista, sem a importância que o Direito Público assumiu nos tempos presentes.
As graduações brasileiras em direito pouca importância davam ao Direito Constitucional, Administrativo, Eleitoral, etc. Eram “perfumarias” dos “desencontrados”, que utopicamente acreditavam em uma democracia, ainda que distante, em porvir mais além.
Naquele período, ricos textos de juristas-filósofos, preocupados com o ensino jurídico no Brasil, apareceram em livrarias, bibliotecas, seminários e congressos acadêmicos, dentre os quais destaco: José Eduardo Faria, Edmundo Arruda Lima Junior, Horácio Wanderley Rodrigues, Antonio Carlos Wolkmer, Joaquim Falcão, Roberto Lyra Filho, Luis Fernando Coelho, Roberto Aguiar, Tércio Sampaio Ferraz, Clémerson Cléve, João Maurício Adeodato, Alváro Melo Filho e Luis Alberto Warat. Esses juristas estavam preocupados com a crise do ensino jurídico e sua pouca atenção ao saber especulativo e filosófico que deveria e deve ter o bacharel em direito; preocupados com a desatenção para suas exigências de formação social e política, tão necessárias para enfrentar e desenvolver a nova ordem constitucional nascente de então.
Estes textos desveladores reclamavam e defendiam uma cultura jurídica plural, democrática, menos técnica e formalista, voltada também à formação humanista e filosófica dos operadores jurídicos. Uma cultura que compatibilizasse dogmática jurídica e formação filosófica; preparo técnico e capacidade de reflexão social e política; que preparasse para as exigências do mercado de trabalho, mas também para os novos rumos que a cena democrática exigia e pedia dos futuros bacharéis em direito, em solo então reconstitucionalizado e renovado na utopia republicana. Muitos dos jovens tocados por esses ideais resolveram ser professores, para operar aqueles ideais e preocupações.
Era o início de um novo marco na cultura jurídica brasileira. A partir do direito, se resolvia instituir uma nova visão da sociedade, do Estado e das relações entre ambos.
Este marco foi pontuado, entre tantos movimentos, pelo chamado Direito Alternativo, que reuniu no Brasil, notadamente em Florianópolis e pelas mãos dos professores Edmundo Arruda e Horácio Rodrigues, juristas “críticos”, juristas-filósofos, pensadores do direito do Brasil e da América Latina.
Acorreram ao chamado deste movimento quase todos os constitucionalistas da nova geração (hoje homens entre 50 e 60 anos, alguns com um pouco mais de 70): Luis Roberto Barroso, Clémérson Merlin Cléve, Lênio Streck, Marcelo Neves, José Ribas Vieira, Willis Guerra Santiago Filho, Paulo Lopo Saraiva, Néviton de Oliveira Batista Guedes, Eduardo Karrion, Gilmar Ferreira Mendes, Sérgio Sérvulo da Cunha, entre os mais destacados. Dias Toffoli, hoje Ministro do STF, assistiu há alguns desses eventos.
Os anos 90 foram ricos em construções teóricas e filosóficas, notadamente no campo do Direito Constitucional, também por força deste movimento e das pessoas e ideais que ele uniu. Pessoas que, cada qual à sua maneira, trouxeram contribuições teóricas, filosóficas e dogmáticas.
Surgiram, concomitantemente, “A efetividade das normas constitucionais”, de Luis Roberto Barroso, “A eficácia dos Direitos Fundamentais”, de Ingo Sarlet, o “Controle de Constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos”, de Gilmar Mendes, “A ordem econômica de 1988”, de Eros Roberto Grau, a “Colisão de Direitos Fundamentais”, de Edilsom Farias, “A Fiscalização de Controle de Constitucionalidade em Abstrato”, de Clémerson Mérlin Cléve, afora novos e ricos capítulos no curso de Direito Constitucional de Paulo Bonavides. Aportavam no Brasil as ideias de José Joaquim Gomes Canotilho, com sua “Constituição Dirgente e Vinculação do Legislador” e, depois, seu rico e teorético texto “Direito Constitucional”, hoje conhecido como “Teoria da Constituição e Direito Constitucional”. Destacaria ainda dois textos de suma importância naqueles idos: “Fundamentos de Direito Público”, de Carlos Ari Sundfeld, e o relançamento de “República e Constituição”, de Geraldo Ataliba.
Hoje, o Direito Constitucional tem outra face, importância e lugar no plano da ciência jurídica. Hoje, os manuais que tratam do assunto se ocupam detidamente da jurisprudência do STF, coisa absolutamente não encontrada em qualquer manual produzido até 1996. Mudanças, somente com o livro de Alexandre Moraes (hoje Ministro do STF), “Direito Constitucional”, lançado pela Atlas.
Na atualidade, grandes questões nacionais são objeto de indagação perante a Suprema Corte brasileira. Seus ministros são celebridades nos encontros jurídicos no Brasil. Não há tema debatido no congresso, sob o ângulo da vontade majoritária, que não acabe, cedo ou tarde, por ser submetido ao controle de constitucionalidade no STF.
Vivemos, como nunca antes, um momento de exaltação deste ramo da ciência jurídica. O tema de “controle de constitucionalidade” e dos “princípios constitucionais” estão em evidência, ao lado, muitas vezes, dos direitos fundamentais e da noção de democracia constitucional ou de estado democrático de direito.
Nunca falamos tanto de tais temas em congressos, cursos de pós-graduação, monografias, obras coletivas e acórdãos e sentenças do judiciário brasileiro. Todavia, paradoxalmente, parece que o muito que nos ofereceu a doutrina constitucional na última década no século XX e na primeira do século XXI, vem sendo barateado; há uma “vulgata” da constitucionalística, que, pelo viés dos princípios e seu largo campo moral (o moralismo jurídico), vem afrouxando os marcos da segurança jurídica em nome de um voluntarismo judicial, de um ativismo destronador de poderes e direitos positivados na Constituição.
Vivemos tempos em que homens de toga acreditam ser representantes da vontade popular com mais legitimidade do que os ungidos nas urnas pelo corpo de eleitores. Vivemos uma crescente judicialização da política, em todos os seus níveis. Mostra-nos, a meu ver, o movimento ficha limpa que, com a bandeira da moralidade administrativa, conseguiu involuções, no direito brasileiro, próprias de posturas fascistas e matizes ditatoriais – com o “neofascismo no direito.” O direito penal do inimigo, campeando em decisões do STF, com a fragilização de garantias constitucionais penais e adoção de posturas punitivistas contra constitutionem. “A vanguarda iluminista” nos trazendo ao tempo das trevas e do medievo: e.g., ver o empréstimo de valor de prova a delações premiadas, sem respaldo probatório subsequente, mesmo à tomada sob coação de prisão preventiva, sofrida por inúmeros meses, até que o réu (res?!) venha “cantar como passarinho”.
O aplauso de setores da classe jurídica (entre professores, advogados, juízes e promotores) a muitos regressos operados por leis como a ficha limpa, ou reinterpretações do direito, como a prisão sem o trânsito em julgado redefinido pelo STF em fevereiro de 2016, a mim demonstram o quanto ainda temos que construir para uma cultura jurídica democrática sólida, que precisa se prevenir para não regredir ao argumento de progredir.
Estou plenamente convencido de que grande parte da cultura política e democrática de um povo só verdadeiramente se sustenta se houver, de base e de norte, uma forte cultura jurídica democrática, liberal e emancipadora. A falta ou a fraqueza desta cultura fragiliza a reflexão séria da opinião pública e coloca as principais decisões nacionais ao sabor de paixões e circunstâncias momentâneas, ao sabor dos modismos e invencionices de agrado popular, sem respaldo no direito, mormente o constitucional.
Precisamos daquela energia e preocupação teórica, fomentadas na última década do século XX e na primeira do século XXI, para a renovação, proteção e eficácia de nosso Direito Constitucional, que hoje está se tornando líquido e volátil, a depender das novas composições da Suprema Corte e pelos discursos moralistas e posturas conservadoras (e mesmo reacionárias), dentro e fora do STF.
Por Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo., Advogado Publicista com militância nos Tribunais Superiores, Professor de Direito Constitucional, Mestre em Direito Público pela UFSC, Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, Membro da Comissão de Estudos Constitucional do Conselho Federal da OAB.